Os Flashs de Anderson Ribeiro
Por Vinícius Fernandes Cardoso
Interessante no livro Algozes (1999), do contagense Anderson Ribeiro, é o texto de abertura “Viver, ou viver?”: “Este livro é, na verdade, uma ridícula carta de amor (…)” “É também uma crítica libertária, uma vontade, através da poesia (em todas as suas formas de manifestação) de dizer ‘não’ ao comodismo, ao conformismo, à covardia e à falta de percepção, algum de nossos maiores algozes, enquanto impedem-nos de descobrir e exercer nossas verdadeiras e vitais vontades”.
Existem duas linhas de estudo para a compreensão da obra de Anderson Ribeiro, uma que se atenha ao prólogo referido acima e outra que se atenha aos demais textos de Algozes.
O estudioso que se enveredar pela primeira possibilidade irá se deparar com um texto crítico atravessado por leituras e percepções vivenciais cuja linguagem híbrida, comunicativa porém denunciadamente preocupada com sua estetização, ora embaralha o leitor com seus movimentos retóricos ora joga luz sobre questões de nossa época com grande poder comunicativo.
A revelia do autor, que dividiu o livro em capítulos, sendo, Sonetos, Canções, Quadras, Poemas e um E-mail, verificamos uma poética dística que atravessa todos os textos de Algozes, marca claramente evidente no primeiro texto do livro, In totum:
“Cometer aliterações em teus ouvidos
Fazer a pele arder em teus sentidos
Misturar o som do gozo com os gemidos
Depois fazer silêncio dos ruídos (…)”
O poema se desenrola em dísticos: “Cometer aliterações em teus ouvidos” que se colocam e sobrepõem-se seqüencialmente: “Fazer a pele arder em teus gemidos”. Conversando com a então universitária (hoje pedagoga) Priscilla Cândice Cursino, cuja escrita assemelha-se a de Anderson Ribeiro, utilizamos o termo flash para descrever as linhas textuais dela e as de Algozes. O termo, aqui fundado?, não há dúvidas, exprime melhor a poética de Anderson Ribeiro do que o termo dístico, este, bem empregado por Maria Luíza Ramos no estudo “O ritmo elegíaco” (pg.189 do livro Fenomenologia da obra literária), ao tratar do poema “Sofrimento”, de Henriqueta Lisboa. Diferentemente do poema de Henriqueta Lisboa aonde os dísticos, cada qual com sua unidade e força, estabelecem relação no conjunto do poema, no caso de Anderson Ribeiro, as enunciações aparentemente ligadas pelas estrofes e pelo soneto, em verdade, não apresentam unidade orgânica, a disposição destes lembra uma declaração de motivos. Não veja o leitor aqui depreciação, antes constatação. A abertura dos enunciados com verbos no infinitivo será uma marca recorrente principalmente no capítulo Sonetos. Arrisco entender tal recorrência da seguinte forma. Ao lermos o prólogo “Viver, ou viver?” verificamos que Algozes, mais do que uma obra para o deleite, pretende-se uma obra e intervenção e uma obra de nosso tempo. Daí a escolha do infinitivo, tempo verbal que por excelência exprime o aqui e o agora. Outra interpretação nem tão arriscada no caso de Contagem, repleta de obra vivenciais e personalísticas, poderia enxergar na recorrência de verbos no infinitivo a expressão de um traço de personalidade, um caráter “urgente” no autor de Algozes.
Mas, afinal, o que vem a ser um flash?
Diferentemente do verso aqui definido como “segmento que forma unidade de sentido ou unidade sonora”, aqui definimos como flash segmento realizado formalmente embora que não feche unidade semântica nem sonora, geralmente seqüenciado por outro, e, logo, partícipe de um texto “poético” desprovido de unidade orgânica. Podemos efetivamente construir uma seqüência de enunciados desconexos e não estarmos efetivamente produzindo um poema. Vencendo o imediato julgamento de que seria ruim o texto poético desprovido de unidade, proponho o termo flash para definir estas seqüências fonéticas cuja exposição de expressões subjetivas é mais imperiosa que a costura entre as linhas. Uma leitura pouco detida de Algozes não perceberá as desconexões entre os segmentos, pelo contrário, as falsas junções, salvo as exceções, tenderá a desmentir a idéia de flash. Para evitar a má leitura, auxiliemos o leitor utilizando para o nosso exercício crítico o texto “Aquele que sabe” (pg.34):
01_ Pálida a noite em que te fez bem
02_ Feliz você por abrir os olhos mais uma vez
03_ Para saber o porquê
04_ Das cidades por debaixo das pontes
05_ Alça vôo rumo à criação
06_ Seu vôo milenar
07_ Seu ar
08_ O chão
09_ O mar
10_ Sabedoria ritual
11_ Daquele que sabe
12_ A dor se foi
13_ Ao ver o totem
14_ Na pálida noite secular em que te fez bem
15_ Feliz você por abrir os olhos mais uma vez
Primeiramente vamos apontar os enunciados desligados dos antecessores e, ao fazer os apontamentos, estaremos certos que o leitor irá perceber a pertinência das observações. Aparentemente a linha 14 estabelece relação com a linha 1, e a linha 2 estabelece relação com a linha 15. Mas lendo com sensibilidade estática o leitor irá verificar que se trata unicamente de uma repetição que poderia ser, inclusive, descartada. As repetições, quando solicitadas, possuem as seguintes funções: dar ênfase fonética (unissonância) ou semântica (aliteração). No primeiro caso temos como exemplo a letra de Chico Buarque “Café com pão, café com pão, café com pão” que tem como objetivo sugerir o som de uma locomotiva. No segundo caso, ênfase semântica, temos como exemplo poema de Garcia Lorca no qual o segmento “As cinco horas da tarde” repete-se para enfatizar o horário preciso no qual as tropas da ditadura de Franco (Espanha) saem as ruas para impor a autoridade inconteste. A relação entre as linhas 2, 3 e 4, e entre as linhas 5 e 6 são verdadeiras. Mas a ligação entre as linhas 10 e 11 e entre as linhas 12 e 13 apresenta-se artificial e tediosa. Desejo, no entanto, que o leitor enxergue que não existe um núcleo no qual entorno dele girem os pulsares de Anderson ribeiro. As relações entre as linhas são fracas, vaporosas. O que salta aos olhos em Algozes não é a unidade inteligível do texto, ou a musicalidade, como num Paul Verlaine (poeta francês), mas o pulsar de cada disparo. Daí dizer flash. Cada clarão de Algozes ilumina as “cartas de amor” de Anderson Ribeiro e diz “não ao comodismo, ao conformismo, à covardia e à falta de percepção”.
Anderson Ribeiro nasceu a 15 de fevereiro de 1972, em Divinópolis, e atualmente vive em Contagem.
* Ensaio contido no livro “Leituras e Andanças” (2004), de VFC.
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